sábado, 21 de agosto de 2010

Dançando com os anjos

Este texto narra um episódio que denominei “Dançando com os anjos”, que considero importante em meu percurso de professora e mostra que muitas vezes precisamos nos desafiar, frente a situações que parecem não ter nenhuma possibilidade de ação:


“Em agosto de 2005, a professora de Educação Artística estava desenvolvendo um trabalho sobre danças folclóricas junto aos alunos do 6º ano, quando ouviu um comentário da aluna Paola, cadeirante, sobre seu desejo de dançar. Com essa informação, a professora procurou-me dizendo para que eu convidasse a aluna para integrar o “Projeto Ááiune”. Levei um “choque”. Antes mesmo de refletir sobre a maneira com que eu poderia trabalhar a dança com essa aluna, eu a procurei, convidei-a e ela aceitou. Diante da aceitação do convite, desesperei-me, inúmeros questionamentos passaram a povoar meus pensamentos: “Como ela vai dançar?”, “As outras alunas irão aceitá-la?”, “Diante da dificuldade de movimentos ela poderia sentir-se ainda mais excluída?”
Ao mesmo tempo em que esses e outros questionamentos preocupavam-me, um medo imenso apoderou-se de mim. Esse medo tinha como fundamento a maneira como Paola se relacionava com as pessoas. Desde que comecei a lecionar nessa escola, EMEF Odila Maia Rocha Brito, todos os dias eu falava “bom dia” para ela, e ela não respondia, olhava com uma expressão muito séria e emitia uma espécie de “grunhido”, como se ela estivesse desaprovando o meu cumprimento. Eu tinha a impressão que este “grunhido” queria dizer: “O dia é bom para você, olhe para mim...” Mesmo assim, nunca desisti de cumprimentá-la. E vejam a situação em que eu me encontrava: ela aceitou participar do grupo, e agora meu Deus!
Paola tinha muita dificuldade em relacionar-se com as pessoas. Ela não entrava ou saía da escola junto com os outros alunos, chegava mais cedo e saia um pouco mais tarde, acompanhada pela mãe. Não tinha amigos e tinha uma grande dificuldade de aprendizagem. Estar presa a uma cadeira de rodas não era o seu único problema. Além de não andar, ela tinha a cabeça grande, desproporcional ao corpo, seu abdômen era pequeno e curvado, com uma elevação nas costas, seus pés eram extremamente pequenos, e, devido às inúmeras cirurgias a que foi submetida durante toda a infância, seu corpo era coberto por cicatrizes. Não sendo tudo isso suficiente, ainda tinha a necessidade de usar fraldas.
De repente, uma menina com todos esses problemas estava integrando o Projeto Ááiune. Não sabendo o que fazer com ela, nada planejei, recebi-a no grupo e começamos a trabalhar. Não agi com ela de forma diferente do que agia com as outras meninas. Não fiz nenhum trabalho especial. Apenas procurei, no dia-a-dia, mostrar a ela como era bonita, incentivando-a a olhar no espelho, a cuidar-se, da mesma forma como agia com as outras meninas. Mostrei a ela que seus lindos e lisos cabelos negros eram o sonho de várias meninas dependentes de “chapinha”.
No momento da dança, procurei colocá-la como personagem central das coreografias, ela era a deusa Ísis e todas as meninas dançavam em reverência a ela. Uma das meninas era escolhida para empurrar a cadeira de rodas para o centro do palco. Paola dançava com os braços, usando muito o olhar e o sorriso. As outras meninas dançavam ao redor dela. Certo dia, fui pega de surpresa, uma briga estava acontecendo entre as meninas, fato nunca antes ocorrido. Fui ver o que estava acontecendo. As meninas estavam brigando porque todas queriam entrar no palco empurrando a cadeira da Paola. Fui obrigada a intervir.
A partir desse momento um “milagre” aconteceu. Nasceu uma nova Paola. Algo dentro dela havia desabrochado. A vida havia penetrado naquele corpo disforme. Paola sorria, gargalhava, dizia bom dia sorrindo. Não permitia mais que a mãe a levasse para a escola, ela ia sozinha com sua cadeira e encontrava no caminho as colegas do projeto que a acompanhavam. Todos os dias quando eu descia a rua da escola no horário da entrada, lá estava a Paola rodeada pelas colegas, rindo, brincando, conversando, vivendo sua vida plenamente. Passou a chegar e ir embora da escola no mesmo horário que os outros alunos. Começou a cuidar de sua aparência: passou a usar brincos, pulseiras, anéis, batom, cuidava com esmero dos cabelos. Eu me senti tão feliz! Ela não sentia mais vergonha de pedir ajuda quando sua fralda estava aparecendo, sentia-se segura. Pedia para que eu a tirasse da cadeira e a colocasse no chão para fazer alongamento junto com as outras meninas. Eu segurava seu pezinho e esticava sua perna para alongar. Apesar das diferenças, ela passou a se sentir igual às outras, fazendo parte de um grupo, e mais que isso, sendo personagem principal desse grupo de adolescentes.
Paola apresentou sua dança pela primeira vez para o público na Festa da Primavera da igreja local. Mesmo conhecendo todas as pessoas que estavam na festa, ela não se envergonhou, dançou, do seu modo, emocionando todas as pessoas presentes.
Certa ocasião fomos fazer uma apresentação no Instituto de Pedagogia Terapêutica Prof. Norberto de Souza Pinto. Paola nos surpreendeu mostrando àquelas pessoas portadoras de necessidades especiais que, assim como ela, todos poderiam realizar seus desejos, por mais que parecessem impossíveis.
Sua última apresentação foi no IV Festival Árabe, realizado no Teatro de Arte e Ofício. Paola subiu ao palco, contou sua história de vida e mostrou o quanto o Projeto Ááiune foi importante na sua vida. As pessoas da platéia emocionaram-se, embargadas pela emoção, aplaudiram Paola. Os aplausos foram longos. Em seguida, eu dancei junto com o grupo. Todas nós subimos ao palco para dançar tentando conter as lágrimas. Nesse momento em que relato as experiências da Paola, as lágrimas e a emoção me atingem, mal posso ver o que estou escrevendo. Esse momento tão marcante foi o último que compartilhamos com a Paola. Dias depois, ela foi submetida a mais duas cirurgias, uma no abdômen e outra na cabeça. A cirurgia do abdômen não cicatrizou e a da cabeça deixou seqüelas, Paola havia ficado cega. Meses depois, não resistindo aos efeitos da cirurgia Paola faleceu, mas deixou-nos um exemplo de superação. Creio que agora ela deve estar dançando em algum lugar muito especial, livre de sua cadeira, de seu corpo físico, solta, feliz, sorrindo, linda, usufruindo todos os movimentos que até então eram impossíveis. Paola, que nosso amor a alcance onde estiver e que sua coragem nos inspire a cada momento de nossas vidas.”

Silvana Salvador do Amaral

Um comentário:

  1. Eu não tive a oportunidade de conhecer a Paola, mas conserteza eu vou levar isso como exemplo de vida!
    Ela com certeza foi uma guerreira e muito vitoriosa!
    Parabéns Paola.

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